Conversamos com frequentadores de festivais e com o mercado da música para entender os desdobramentos dessa tendência e se essa onda de festivais vai sobreviver ao tempo.
Não é de hoje que os festivais de música brasileiros tomam conta de todo o país. Em 2018, uma pesquisa realizada pela ticketeira Sympla e pela SIM São Paulo apresentou um levantamento que contabilizava 1.928 festivais entre 2016 e 2018 no Brasil. Em fevereiro de 2019, a União Brasileira de Compositores (UBC) publicou uma matéria que previa mais de 130 festivais para aquele ano.
O Mapa dos Festivais nasceu em 2019, com o objetivo de mapear todos esses festivais que acontecem de Norte a Sul do país. Com a pandemia da Covid-19, foi necessária uma pausa nos eventos, mas em 2022 os festivais voltaram com tudo.
Após dois anos sem grandes eventos, o público pareceu sentir falta de shows e festivais. Reflexo disso é que a edição de 2022 do Lollapalooza, por exemplo, registrou um aumento de 23% de pagantes com relação à edição de 2019. Com essa perceptível demanda do público, houve também um aumento de festivais no Brasil.
Até junho de 2023, registramos 46% mais festivais que em 2022
Com a volta dos festivais presenciais, o Mapa também voltou a cadastrar os eventos. Em 2022, registramos 125 festivais na nossa plataforma. Mas foi em 2023 que sentimos um aumento ainda maior na quantidade de festivais de música realizados no Brasil. Até junho de 2023 (mês em que essa pesquisa foi realizada), registramos 183 festivais que aconteceram ou vão acontecer até dezembro. Para ter um parâmetro desse crescimento, só no mês de maio, mapeamos 35 festivais. Estamos só no meio do ano e ainda há muitos festivais a serem divulgados até dezembro, então essa lista ainda deve aumentar bastante.
Agora, será que esse boom dos festivais é real?
Apesar de ser incrível ter essa quantidade de festivais de música pelo país, a alta demanda de eventos está trazendo alguns questionamentos:
“Acredito que a pergunta central dessa temporada e que vamos tentar responder é: se estamos vivendo realmente um boom de festivais ou se estamos apenas voltando ao normal, só que em outro contexto?“
– Juli Baldi, diretora do Mapa dos Festivais
A impressão do frequentador de festivais e especialista em gestão de marcas e criador de conteúdo, Gleidistone (Tomtom), é de que, de fato, existem mais festivais em 2023 do que em 2019, pois antes da pandemia existia um calendário muito bem definido, onde já era sabido que festivais iriam acontecer em cada época do ano.
“Hoje, em um mês você tem 30 festivais acontecendo no Brasil todo. É um volume muito grande, novos festivais aparecendo (…) Tem muita gente que não produzia festival que começou a produzir festival depois da pandemia. O mercado de festivais tornou-se um mercado muito atrativo.”
– Tomtom, frequentador de festivais, especialista em gestão de marcas e criador de conteúdo
Para quem já estava no mercado de festivais antes de 2020, como Ricardo Brautigam (Cadinho) – fundador do festival Rock The Mountain -, a diferença do pós-pandemia no mercado é evidente.
“Acho que esse boom, logo quando começou a ter a abertura dos eventos, fez com que novos produtores se animassem e surgissem novos festivais ou crescessem os que já existiam. Então acho que a diferença foi essa mesmo, com a demanda reprimida, teve muita procura e fez com que os produtores crescessem a oferta.”
– Cadinho, fundador do festival Rock The Mountain
O Rock The Mountain é um dos festivais que cresceram de lá pra cá. Segundo Cadinho, o RTM cresceu em 400% no retorno pós-pandemia. Chegando a ter duas edições de dois finais de semana em 2022.
O mercado de festivais cresceu, mas a realidade econômica pós pandêmica é outra.
A necessidade de isolamento durante a pandemia desorganizou as cadeias de produção, fornecimento e transporte, reduzindo a oferta de uma série de produtos. Ao passo que as economias foram reabrindo, a demanda voltou com força, mas os gargalos* não foram resolvidos na mesma velocidade, fazendo com que as inflações aumentassem muito. No mercado da música e dos festivais não foi diferente:
*Gargalo: a etapa do processo de produção que limita o processo a produzir mais.
“Minha impressão é que a oferta cresceu, mas o investimento na cadeia de suprimentos dos festivais, de som, luz, estrutura, prestação de serviços não acompanhou. Além do aumento de preços de passagem aérea, hotel. Ou seja, mais competição por público e custos muito mais elevados, dólar caríssimo. Ficou mais difícil fechar a conta.”
– Coy Freitas, fundador e CCO da Orangtogando
Ana Garcia, diretora do festival No Ar Coquetel Molotov, concorda com a visão de Coy: “A mudança é drástica. Tivemos um aumento absurdo dos preços em geral, desde estrutura, logística, cachês e mão de obra. Estão todos tentando tirar o atraso, além da inflação que temos sofrido.” Coy ainda complementa que:
“A sustentabilidade dessa equação de oferta e demanda não depende somente do desejo de consumo da audiência. Depende de economia estável, emprego e renda. Depende de empresas saudáveis com capacidade de patrocinar, de custos de logística mais baixos. Depende também do entendimento do poder público sobre o impacto desse segmento em diversas áreas da economia que abastecem o setor, e de possíveis incentivos para que os investimentos nessa cadeia sejam feitos.”
– Coy Freitas, fundador e CCO da Orangtogando
Para Cadinho, quem está no mercado de festivais precisa ficar mais esperto e criativo para se destacar. “Acho que é sustentável para quem faz seu dever de casa, se você faz o seu bem feito, você vai ter sucesso. Acho que é isso, vai elevar os níveis dos festivais, né? Só quem for bom, continua”, afirma. Sob uma perspectiva do público, Tomtom observa que nos últimos anos, muita gente vem apostando no mercado de festivais, mas que será difícil mantê-lo por muito tempo, já que, para ele, não existe demanda para tantos festivais acontecendo simultaneamente.
“Quando você tem isso bem delimitado, as pessoas conseguem se organizar, se programar financeiramente… Não dá pra você no mesmo dia ter 5 festivais acontecendo em lugares diferentes, não dá pra ir em todos, você vai escolher um.”
– Tomtom, frequentador de festivais, especialista em gestão de marcas e criador de conteúdo
Com tantos festivais rolando ao mesmo tempo, a concorrência por patrocínio também aumentou.
Mas o problema vai além: como conseguir patrocínios com tanto festival rolando ao mesmo tempo? O No Ar Coquetel Molotov, por exemplo, é um festival independente de Pernambuco que há 20 anos vem se consolidando na cena, mas ainda encontra dificuldades em fechar patrocínios:
“É o nosso problema desde a primeira edição. Essa semana estava pensando como nós nordestinas temos tanto medo de discutir com as poucas marcas que investem nesse mercado, temos uma mania de inferioridade. As marcas tendem a achar que no Nordeste tudo é mais barato e em conta, quando na verdade é bem o contrário. Já realizei festivais em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, e digo: Nordeste é o lugar mais caro de se fazer (festivais). Tem mais, Pernambuco é um dos poucos estados sem mecenato*.”
– Ana Garcia, fundadora do Coquetel Molotov
*mecenato: incentivo destinado à produção cultural.
Para nos ajudar a entender um pouco mais o papel dos patrocinadores no ecossistema dos festivais de música, Coy Freitas aponta que “as marcas buscam estar onde o consumidor vive momentos inesquecíveis. E cada vez expandindo mais essa presença com as oportunidades que o digital oferece”. Segundo ele: “um festival precisa de personalidade e linguagem para garantir que se formem as comunidades em torno de cada proposta. Onde tiver público, terão marcas.”
Para vender ingressos, também é preciso um bom line up.
Mas o que é um “bom line up”? É subjetivo,no entanto, o que o que os festivais de nicho e de multi gêneros têm em comum é que eles precisam, ao menos, de um artista mainstream para vender ingressos. É aí que também volta a questão do patrocínio. Ricardo Rodrigues, produtor cultural, sócio e gestor institucional da agência LetsGIG, acredita que as marcas podem influenciar na construção de line ups:
“Eu acho que os festivais têm dado pouco espaço para artistas independentes, mais novos e midstream porque eles sempre acham arriscado (…) muitas vezes esses festivais de agência têm que convencer as marcas da qualidade do seu line up. Isso é super complicado. Muitas vezes a marca não tem essa visão.”
– Ricardo Rodrigues, produtor cultural, sócio e gestor institucional da agência LetsGIG.
Para Ricardo, também “falta presença da política pública que garante um pouco de recurso não tão atrelado às estratégias de marketing e que possa permitir que um curador possa inovar e realmente conquistar o público para algo que vai além do nome do próprio artista”.
Além disso, um festival pode impactar muito a carreira de um artista, pois um show feito para centenas ou milhares de pessoas que não são necessariamente o público daquele artista, o coloca em evidência. Quanto a isso, Ricardo Rodrigues acredita que no meio desse boom de festivais tanto os artistas quanto os empresários estão entendendo o potencial desses eventos.
“Um festival pode ser um divisor de águas na carreira de vários artistas. Entendo que tanto fora do Brasil quanto aqui, cada vez mais agora os artistas e empresários estão entendendo também esse potencial e preparando seus lançamentos para lançar em shows novos em festivais. Muitas vezes festivais estão sendo transmitidos ao vivo, ou festivais que tenham uma presença grande de pessoas do mercado. Um festival pode ser um grande espaço de visibilidade pro ao vivo, que por mais que você tente vender ali por números de streamings, é um show completo, bonito, bacana, que entrega, que o público interage, é aquilo que um curador quer.“
– Ricardo Rodrigues, produtor cultural, sócio e gestor institucional da agência LetsGIG.
Os line ups estão repetidos mesmo ou é só uma sensação?
No final de 2022, questionamos: os festivais brasileiros estão com line ups repetidos? E com dados dos lines cadastrados no Mapa dos Festivais, vimos que alguns artistas realmente apareceram mais que outros nas grades dos principais festivais no Brasil. Tomtom, que é frequentador assíduo de festivais, enxerga a repetição de lines como um auxílio na hora de escolher um festival entre tantos para ir: “Se você assistiu uma performance de x artista em x festival, provavelmente, você vai preferir ir em um festival que tenha shows que você nunca viu antes.”, explica.
Para Tomtom, atualmente os lines estão sendo muito influenciados pelo TikTok, pelo o que está sendo tendência lá e isso acaba indo para um ‘lugar comum’. Ou seja, assim, os artistas mais escutados, continuam no topo das paradas e há muitos poucos novos shows para descobrir.
“Eu acho que falta um olhar mais para o Brasil profundo, para entender o que está acontecendo na cena musical em outros lugares e tentar mesclar isso no line up. É claro que a gente precisa desses grandes nomes, dos nomes pops para dar peso ao line, fazer as pessoas comprarem esse ingresso. Nomes que não precisam ser eliminados, mas esses lines precisam se mesclar, né?”
– Tomtom, frequentador de festivais, especialista em gestão de marcas e criador de conteúdo
Já Ricardo Rodrigues, não acredita que os lines estejam tão repetidos assim. “Eles repetem alguns nomes, mas no geral é difícil até você ficar repetindo porque você precisa consumar o público de novo”, afirma. No entanto, Ricardo também aponta que, em uma escala nacional, é normal que x nome se repita em diferentes festivais de Norte a Sul do país. “É a chance de alguns artistas tocarem naquelas cidades e se não for em um festival, talvez não seja em outro lugar”, comenta.
A sensação é a de que a repetição de lines acontecem, geralmente, nos grandes festivais. O mapeamento diário que fazemos nos mostram a quantidade de festivais que acontecem por todo o Brasil. Festivais independentes como o No Ar Coquetel Molotov, tem que lidar com altos preços de estrutura, logística, cachês e mão de obra, e isso afeta o line up. Sobre essa questão no Coquetel Molotov, Ana Garcia afirma:
“A nossa missão continua sendo descobrir novos artistas e revelar esses artistas para o nosso público que confia na nossa curadoria. É muito fácil começar a se questionar quando todos à sua volta estão focados nos grandes nomes”.
– Ana Garcia, fundadora do Coquetel Molotov
Afinal, o boom dos festivais é sustentável?
Após ouvir tantos pontos de vista de produtores de festivais de todo o Brasil e de todos os tamanhos, além de falar com o público que frequenta festivais e com artistas/empresários de artistas para traçar um panorama completo que apresentamos durante esse texto, chegamos a conclusão que sim estamos vivendo um boom dos festivais que envolve diversos fatores e problemáticas, mas que essa onda só será sustentável se a grande maioria dos festivais conseguir vencer essas barreiras que incluem logística, patrocínios e fechamento de line ups que paguem as contas. E, é claro, se a economia estiver fluindo nos próximos anos e o público puder arcar com o custo de ir em cada vez mais festivais. E você, chegou a que conclusão? 🙂